Embora o conhecimento a respeito da hepatite viral tenha
aumentado dramaticamente nas últimas quatro décadas, a doença continua sendo um
problema atual. Descrições de pacientes ictéricos são encontradas na literatura
séculos antes de Cristo, até mesmo nos relatos de Hipócrates. A natureza
infecciosa da doença foi primeiramente reconhecida, oitocentos anos antes de
Cristo, pelo Papa Zacarias. No entanto, muitos dos relatos de epidemias em
grandes populações, nos últimos séculos, devem-se provavelmente à transmissão
enteral da atualmente conhecida hepatite A. Somente após a introdução da vacina
contra varíola é que foi reconhecida a via percutânea de transmissão da
hepatite. A primeira associação entre transfusão de hemoderivado e o
desenvolvimento de hepatite foi relatada em 1943, por Krugman e
colaboradores.
A partir de então, ocorreram diversas tentativas frustradas de
identificação do agente específico responsável pela hepatite, até que na década
de 60 foi identificado o marcador sorológico para a hepatite B. O reconhecimento
dos agentes virais responsáveis pelas hepatites A e B ocorreu nos anos
seguintes. Esse reconhecimento foi um grande avanço, porém, rapidamente
tornou-se aparente, que muitos casos de hepatite não podiam ser explicados pela
infecção por vírus da hepatite A ou B.
A entidade hepatite não-A, não-B, foi inicialmente descrita em
1974. A etiologia infecciosa foi suspeitada com base na observação de que podia
ser transmitida, por via parenteral, a chipanzés e humanos, por meio de
hemotransfusão. Após várias tentativas, o agente foi finalmente identificado e
seu genoma estabelecido. Essa revolução levou a um grande interesse em pesquisas
sobre esse vírus, atualmente designado de vírus da hepatite C (HCV), e a doença
causada pelo mesmo é denominada de hepatite C. Com o desenvolvimento de testes
para detecção de anticorpos, o HCV foi identificado como o principal causador da
hepatite não-A e não-B. Estima-se que cerca de 170 milhões de pessoas, em todo o
mundo, estejam infectadas pelo HCV, constituindo-se talvez na causa mais comum
de doença hepática crônica, nos EUA.
1. Período de Incubação
O período de incubação do HCV situa-se entre duas e vinte
semanas, com uma média de seis a nove semanas entre a exposição e a elevação dos
níveis de transaminases ou surgimento dos sintomas. A viremia, determinada pela
quantificação do RNA viral circulante, geralmente é detectada entre dez a vinte
dias após a exposição, durante o período de incubação precoce, embora uma
viremia mais leve possa ocorrer antes disso.
2. Padrões Epidemiológicos
A infecção pelo HCV distribui-se amplamente pelo mundo. Nos
EUA, essa infecção é a causa mais comum de infecção viral transmitida pelo
contato com sangue. De fato, não mais do que 15% a 45% dos pacientes agudamente
infectados, recuperam-se completamente (ou seja, ocorre o desaparecimento do RNA
viral no sangue circulante e normalização dos níveis de aminotransferases e,
eventualmente, perda dos anticorpos anti-HCV, após muitos anos).
Altas taxas de soroprevalência foram relatadas de diversas
regiões geográficas; taxas de infecção excedem 20% em alguns locais, em
comparação a taxas de 1 a 2% em regiões vizinhas. Embora não seja totalmente
compreendido, altas taxas podem ser conseqüentes a transmissão iatrogênica, por
meio de reutilização de agulhas, seringas ou outros instrumentos.
A hepatite C foi responsável por 10 a 15% dos casos de hepatite
viral aguda, relatados nos EUA na última década; nos anos mais recentes foi
relatado declínio importante na incidência, provavelmente devido à redução dos
casos de transmissão por transfusão e uso de drogas ilícitas. Muitos dos casos
de infecção pelo HCV ocorrem em indivíduos jovens, embora todas as faixas
etárias possam ser envolvidas. Atualmente, acredita-se que cerca de 1,8% da
população têm evidências de infecção passada ou presente pelo HCV, estando boa
parte desses indivíduos em viremia. As taxas de soroprevalência são maiores em
indivíduos negros do que brancos, e o pico de incidência é entre 30 e 39 anos de
idade. Estima-se que cerca de 10.000 mortes por ano sejam devidas a seqüelas de
hepatite C crônica.
1. Transmissão Percutânea
A exposição percutânea direta ao sangue infectado é o modo mais
comum de disseminação do HCV, e os indivíduos com infecção crônica são a
principal fonte de infecção para as outras pessoas. Antes da identificação do
HCV, em 1989, a hepatite C era a principal complicação associada à
hemotransfusão. A partir de meados da década de 90, como conseqüência de
mudanças nas políticas dos bancos de sangue pela exclusão de indivíduos com
fatores de risco para infecção pelo HIV, pela introdução do teste de doadores
(dosagem de TGO e anticorpo contra antígeno do core do HBV) e pela melhora das
técnicas de rastreamento para anti-HCV, o risco de infecção pelo HCV caiu a
cerca de 1 para cada 100.000 unidades transfundidas. Com o avanço das técnicas
de rastreamento, espera-se que esse risco caia em breve para 1 a cada 1 milhão
de unidades transfundidas.
O uso de drogas injetáveis, com compartilhamento de agulhas e
outros equipamentos, tem sido a principal forma de transmissão do HCV, nos EUA,
e entre 50 a 95% dos usuários já foram infectados. Número limitado de estudos
indicam que a taxa de infecção, após exposição acidental de profissionais da
área de saúde, com equipamento contendo material infectado, varia entre 0% e
10%.
Entre 10 a 45% dos pacientes em hemodiálise são infectados pelo
HCV, e surtos continuam a ocorrer, nessa população de pacientes. As
hemotransfusões não são a fonte mais provável e sim a disseminação nosocomial
através das máquinas de diálise e a contaminação dentro da própria unidade,
devido à má aderência às regras de controle de infecção.
Acupuntura realizada com agulhas não-estéreis, e o uso de
materiais contaminados por praticantes de medicina alternativa, podem ser os
mecanismos responsáveis por alguns episódios de infecção pelo HCV, adquirido na
comunidade. Além disso, nos países em desenvolvimento, a transmissão nosocomial
devido à reutilização de agulhas, seringas ou endoscópios, sem esterilização
adequada, pode contribuir para a infecção.
O transplante de órgãos, a partir de doadores infectados pelo
HCV, é outra forma reconhecida de transmissão, porém o rastreamento dos doadores
reduziu esse risco. Outras formas de transmissão percutânea incluem a tatuagem e
o implante de piercings
2. Transmissão por Contato
A transmissão interpessoal, a partir de indivíduos infectados
aguda ou cronicamente, por meio de contato íntimo sexual, tem sido relatada e
apoiada por estudos de seqüenciamento genético. O risco de transmissão sexual é
pequeno e, provavelmente, relacionado à freqüência, duração e natureza da
exposição sexual. Como pode ser antecipado, as taxas de prevalência do anti-HCV
em prostitutas e homens, que fazem sexo com homens sexualmente ativos, vêm
aumentando, embora o uso de drogas injetáveis possa confundir a associação. No
entanto, mesmo após o controle das exposições percutâneas, o número de parceiros
sexuais ao longo da vida e o número de parceiros oral ou anal receptivos, foi
fracamente associado à soroprevalência do HCV. A transmissão do HCV do homem
para a mulher parece ser mais comum do que a transmissão da mulher para o
homem.
3. Transmissão Vertical
Cerca de 1 a 5% dos recém-nascidos, filhos de mães
anti-HCV-positivas, apresentam RNA viral circulante, no primeiro ano de vida.
Altas taxas de transmissão ocorrem de forma paralela à infecção concomitante
pelo HIV e aos altos níveis de viremia materna. Nem o aleitamento materno e nem
o parto cesário foram implicados na transmissão.
4. Vias Não-Estabelecidas
Embora 10% dos pacientes, infectados pelo HCV, não admitam um
fator de risco específico associado à transmissão, alguns comportamentos de alto
risco podem ter sido esquecidos ou serem tão carregados emocionalmente, que o
paciente não consegue discutir. Outros pacientes, geralmente de nível
socioeconômico mais baixo, admitem comportamento de alto risco, porém não nos
seis meses que antecedem o surgimento da doença. Vias improváveis de transmissão
são: via respiratória, via alimentar e por meio de água contaminada.
O HCV não é diretamente citopático, exceto talvez em algumas
circunstâncias, como por exemplo, nos receptores de transplante hepático,
imunossuprimidos, nos quais o nível de replicação viral é alto e os produtos
gênicos expressos de maneira exagerada. Assim, em muitos casos de infecção pelo
HCV, a patogênese da lesão hepática aguda e crônica é conseqüente à resposta
imune do hospedeiro, que consiste em resposta inespecífica (incluindo interferon
e outras citocinas, atividade de células natural-killers) e resposta celular e
humoral específica. A ocorrência de infecções crônicas graves, em alguns
pacientes com deficiência de imunidade humoral primária, indica que a resposta
imune humoral provavelmente não é responsável pela lesão hepática ou rápida
progressão da doença.
Os mecanismos precisos responsáveis pela lesão hepática ainda
precisam ser definidos. Na infecção autolimitada, as citocinas e quimiocinas,
produzidas no fígado, podem contribuir para a lesão dos hepatócitos, e uma
resposta policlonal e inespecífica de células T CD8+ e CD4+ parece estar
associada à erradicação da infecção; além do mais, essa resposta pode permanecer
indefinidamente.
Em geral, quando o HCV é eliminado da circulação, durante a
infecção aguda ou como conseqüência de terapia eficaz na infecção crônica, o
clearance hepático também ocorre e a inflamação hepática desaparece. Em
pacientes que desenvolvem infecção crônica, a resposta imune e as citocinas
parecem ser inadequadas para a eliminação do vírus, no interior dos hepatócitos
infectados, porém contribui para a lesão hepática contínua. Um efeito dos
produtos gênicos, na apoptose mediada por citocinas ou oncogenes, também pode
contribuir para a lesão hepática ou persistência do HCV, mas estudos adicionais
são necessários para elucidar a importância desse mecanismo. O papel da seleção
imunomediada de HCV resistente, na infecção persistente, ainda permanece
incerto, porque esse fato não é essencial para o desenvolvimento de infecção
crônica.
Em pacientes com infecção aguda, a biopsia hepática revela, em
geral, uma forma leve de hepatite, com inflamação portal linfocítica, inflamação
parenquimatosa, necrose focal de hepatócitos, na forma de degeneração com
formação de vacúolos e apoptose, com surgimento de corpos apoptóticos
acidófilos. A análise histopatológica, de espécimes obtidos de pacientes com
hepatite C crônica, revela alterações típicas de inflamação crônica com
quantidade variável de fibrose. Quatro lesões são úteis para a distinção entre
hepatites B e C: lesão de ducto biliar; folículos linfóides ou agregados,
ocasionalmente com centros germinativos; esteatose macrovesicular; material
semelhante ao corpúsculo de Mallory, em topografia periportal. A esteatose pode
ser relacionada a alterações do metabolismo da apolipoproteína B, induzida pelo
HCV, podendo estar associada a aumento do risco de fibrose hepática. Granulomas
múltiplos e células gigantes multinucleadas podem ser encontradas em cerca de
10% dos pacientes com hepatite C crônica e cirrose.
1. Características Clínicas
Hepatite sintomática, com icterícia, é encontrada em menos de
20% dos casos de hepatite C aguda. Febre é um sinal incomum e a hepatomegalia
está presente em menos de um terço dos casos. Os pacientes com hepatite C
crônica podem queixar-se de fadiga, embora a maioria seja assintomática ao
diagnóstico.
2. Exames Bioquímicos
Os picos de concentração sérica de aminotransferases e
bilirrubina costumam ser inferiores ao observado nos casos de hepatite A e B
agudas. Flutuações nos níveis de aminotransferases costumam ser observados nos
casos agudos e crônicos. Estudos hematológicos não são de ajuda, durante o curso
da hepatite C aguda não-complicada. Entretanto, marcadores auto-imunes (como
fator reumatóide e FAN) são comuns nos pacientes com hepatite C crônica.
O primeiro marcador de infecção aguda, a aparecer no sangue
circulante, é o RNA viral, que pode ser detectado por meio de teste de reação em
cadeia da polimerase (PCR), dentro de dez a vinte dias após a exposição, três a
seis semanas antes da elevação das aminotransferases e seis a nove semanas antes
do surgimento do anti-HCV. Viremia, em baixos níveis, indetectáveis pelos
métodos atuais, ou viremia intermitentemente não-detectável, podem preceder o
período de detecção. O diagnóstico sorológico da infecção baseia-se na detecção
do RNA viral e de anticorpos contra antígenos do vírus, associado à elevação das
aminotranfersases e à ausência de evidências de hepatite pré-existente.
Anticorpos contra antígenos do HCV podem ser detectados em mais
de 60% dos pacientes, durante a fase aguda da doença; a soroconversão ocorre
semanas a meses depois, em mais 35% dos casos. Em 5% dos pacientes infectados,
os testes disponíveis atualmente podem permanecer persistentemente negativos,
embora a presença de RNA viral circulante indique a presença de infecção. Os
títulos de anti-HCV declinam com o tempo, após a recuperação da infecção aguda,
e podem tornar-se indetectáveis, embora a resposta celular persista.
Na hepatite C crônica, o anti-HCV está, invariavelmente,
presente, e os níveis circulantes de RNA viral podem ser detectados de maneira
consistente, durante todo o curso da infecção, porém os níveis podem variar
bastante, de uma medida para outra. A carga viral parece aumentar ao longo do
tempo, e a viremia ocorre provavelmente pelo resto da vida. Clareamento
transitório e reaparecimento do RNA viral foram bem documentados, mas podem
refletir erros técnicos nos testes, já que o clareamento espontâneo prolongado
costuma ser extremamente raro, uma vez que a infecção tornou-se crônica. Níveis
séricos de aminotransferases são persistentemente ou intermitentemente elevados,
em cerca de 60% a 70% dos pacientes.
1. Hepatite C Aguda
Os benefícios do tratamento de pacientes que se tornam
positivos para RNA do HCV, após exposição acidental ao vírus, são incertos.
Estudos randomizados e controlados, que avaliaram o emprego da monoterapia com
interferon-alfa, indicaram que um curso de tratamento de três meses aumentou
significativamente a probabilidade de clareamento sustentado do RNA viral.
Entretanto, o tratamento da hepatite C aguda, com interferon, não é aprovado
pelo FDA e deve ser considerado experimental. A eficácia do interferon em alta
dose, do interferon associado à ribavirina (um análogo de guanosina) e do
interferon peguilado, associado à ribavirina, na hepatite C aguda, ainda precisa
ser determinado.
2. Hepatite C Crônica
Os objetivos do tratamento da hepatite C crônica são de aliviar
os sintomas, quando presentes; erradicar o HCV, eliminando assim a infectividade
e a inflamação hepática e reduzindo a lesão hepática continuada; prevenir a
progressão histológica e clínica para cirrose, doença hepática em estádio
terminal e carcinoma hepatocelular.
A administração das vacinas contra hepatites A e B é apropriada
para prevenir a superinfecção por esses vírus, em pacientes suscetíveis. Até o
presente, o tratamento de escolha é a combinação de interferon-alfa recombinante
peguilado (conjugado com polietilenoglicol), uma vez por semana por via
subcutânea, na dose de 1µg/Kg ou de 180µg, associado à administração oral de
ribavirina, na dose de 800 a 1.200mg, por um ano. Essa terapia resulta em
declínio rápido e dose-dependente da carga viral, presumivelmente devido á
inibição da replicação viral, seguida de um declínio mais lento e variável,
atribuído à morte dos hepatócitos infectados. Dependendo do genótipo do vírus, a
taxa de resposta virológica sustentada (definida como ausência de RNA viral
detectável, seis meses após o término do tratamento) gira em torno de 50% para o
genótipo 1 e de 90% para os genótipos 2 e 3. O interferon peguilado em
monoterapia é menos benéfico, porém evita a hemólise induzida pela ribavirina,
porém é quase equivalente em eficácia à combinação de interferon não-peguilado e
ribavirina. Entre os pacientes que atingem resposta virológica sustentada, 95%
mantém essa resposta indefinidamente, com níveis normais de aminotransferases e
melhora ou recuperação completa da lesão hepática. Recaídas após dois anos do
término do tratamento são raras.
Os principais efeitos colaterais associados ao uso do
interferon são: síndrome semelhante à gripe; fadiga; depressão; irritabilidade;
insônia; granulocitopenia; trombocitopenia; cabelos finos; e disfunção
tireoideana. Quanto á ribavirina, os efeitos são: anemia hemolítica; e
broncoespasmo. Redução da dose do medicamento é necessária em um quarto dos
pacientes e a interrupção em cerca de 5%.
A taxa de resposta sorológica sustentada é maior em indivíduos
brancos do que negros e nos genótipos 2 e 3, em comparação ao 1, em mulheres e
indivíduos jovens, naqueles com carga viral mais baixa, nos não-cirróticos, nos
imunocompetentes e nos não-etilistas.
A resistência à terapia antiviral ainda é pouco compreendida,
mas acredita-se que a proteína do HCV NS5A esteja envolvida. Para os pacientes
que não respondem ao tratamento, nenhuma outra terapia claramente eficaz
encontra-se atualmente disponível. O tratamento, a longo prazo, com interferon
peguilado isolado, é uma alternativa para interromper a progressão da doença
hepática na ausência de clareamento viral, e está sendo avaliado. Dados
limitados sugerem que o uso do interferon pode ser benéfico, mesmo se o RNA
viral mantiver-se detectável.
Pacientes com cirrose avançada devida ao HCV, são candidatos ao
transplante hepático, mas a recorrência da infecção é a regra. A doença leve e
clinicamente silenciosa, progressiva e levando a insuficiência hepática, é
incomum nos primeiros cinco anos de acompanhamento. O tratamento do carcinoma
hepatocelular associado ao HCV, continua problemático, mas o transplante oferece
os melhores resultados nesses pacientes cirróticos.
Fonte: Bibliomed